terça-feira, 12 de outubro de 2010

Em busca de um sonho no deserto

Uma utopia verde se ergue do deserto árabe

Em 2007, quando o governo local anunciou o projeto da "primeira cidade de carbono zero" nos arredores de Abu Dhabi, muitos ocidentais o consideraram um golpe de efeito -uma imitação da torre de 828 metros de altura no deserto e do arquipélago de ilhas artificiais em forma de palmeiras em Dubai.

A cidade, chamada Masdar, seria um quadrado perfeito, com cerca de 1,5 km de lado, levantado sobre uma base de 7 metros de altura para captar as brisas do deserto. Abaixo de seu labirinto de ruas exclusivas para pedestres, uma frota de carros elétricos sem motoristas navegaria silenciosamente por túneis com iluminação suave. O projeto lembra ao mesmo tempo uma fortaleza murada medieval e uma versão atualizada da Terra do Amanhã na Disney World.
Bem, essas primeiras avaliações estavam erradas. No final de setembro, enquanto as pessoas começavam a se mudar para a primeira parte concluída do projeto, uma área de 14 mil metros quadrados ao redor de um instituto de pesquisa voltado para a sustentabilidade, ficou claro que Masdar é mais ousado e arriscado.

O lugar mistura design de alta tecnologia com antigas práticas de construção em um modelo intrigante de comunidade sustentável, mas também reflete a mentalidade de bairro murado que tem se espalhado como um câncer por todo o mundo. Sua pureza utópica e seu isolamento da vida na cidade real vizinha se baseiam na crença de que a única maneira de criar uma comunidade realmente harmoniosa é cortá-la do mundo em geral.

O criador da cidade, a firma Foster & Partners, conhecida por suas façanhas tecnológicas, trabalhou em uma visão social interessante, em que a tradição local e o impulso em direção à modernização não entram mais em conflito.

Norman Foster, o sócio principal, disse que começou com um estudo meticuloso dos antigos assentamentos árabes, incluindo a antiga cidadela de Alepo, na Síria, e as torres de apartamentos com paredes de barro em Shibam, no Iêmen, que datam do século 16. "A ideia foi recuar e compreender os fundamentos" de como essas comunidades se tornaram habitáveis em uma região onde o ar pode dar a sensação de 65 graus, disse Foster.

Uma das descobertas feitas por seu escritório foi que os assentamentos eram, muitas vezes, construídos sobre terreno elevado, não apenas por razões defensivas, mas também para aproveitar os ventos mais fortes. Alguns também usavam altas "torres de vento" ocas para canalizar o ar para baixo, até o nível da rua. E as ruas estreitas -que eram quase sempre transversais à trajetória do sol, de leste para oeste, para maximizar a sombra- aceleravam o fluxo de ar pela cidade.

A equipe de Foster estimou que ao combinar essas abordagens poderia fazer Masdar parecer até 50% mais fresca. Assim, eles poderiam diminuir pela metade a quantidade de eletricidade necessária para fazer a cidade funcionar. Cerca de 90% da energia utilizada deverá ser solar, e o restante virá da incineração do lixo (que produz muito menos carbono do que amontoá-lo em depósitos).

Masdar fica a 30 km do centro de Abu Dhabi. Segue-se por uma estrada estreita que passa por uma refinaria de petróleo e trechos desolados de deserto, até alcançar o muro de concreto liso de Masdar e descobrir a cidade acima dele. De lá, uma rua segue em túnel pela base até uma garagem logo abaixo da borda da cidade.

Sair desse espaço para uma das estações de "Trânsito Rápido Pessoal" faz lembrar os cenários desenhados por Harry Lange para "2001: Uma Odisseia no Espaço". Você está em um salão grande e escuro, diante de uma fileira de carros brancos em forma de vagem, alinhados em baias retangulares de vidro. A luz do dia desce por um muro de concreto aparente atrás deles, o que sugere a vida lá em cima.

Os primeiros 13 carros elétricos futuristas de uma frota projetada de centenas estavam sendo testados no dia da minha visita, mas assim que o sistema estiver instalado, dentro de algumas semanas, um usuário poderá entrar em um carro e escolher o destino em uma tela de LCD. Então o veículo silenciosamente entrará no tráfego, parecendo se conduzir sozinho por uma rede de rotas no subsolo da cidade elevada.

Não há cabos nem trilhos.

Os prédios que foram construídos até agora têm dois estilos. Laboratórios dedicados a desenvolver novas formas de energia sustentável e afiliados ao Instituto de Tecnologia de Massachusetts estão abrigados em grandes estruturas de concreto revestidas de painéis semelhantes a travesseiros de etileno-tetrafluoretileno, um plástico translúcido superforte que se tornou moda nos círculos de arquitetura contemporânea por sua aparência elegante e durabilidade. No interior, grandes pisos abertos foram projetados para dar maior flexibilidade.

Os prédios residenciais, que por enquanto abrigarão principalmente professores, alunos e suas famílias, adotam um vocabulário arquitetônico mais tradicional. A fachada ondulada de concreto em treliça é inspirada nas telas mashrabiya, comuns na região. A treliça bloqueia a luz direta do sol e protege os interiores da visão, enquanto as curvas proporcionam vistas angulosas do exterior, de modo que os moradores dos apartamentos nunca olham diretamente para as janelas dos prédios em frente. Como muitos campus universitários do Oriente Médio, o bairro é segregado por gênero -as mulheres e famílias vivem em uma extremidade e os homens solteiros, na outra. Cada ponta tem uma pequena praça pública, que funciona como seu centro social.

A medida mais radical de Foster foi a maneira como ele lidou com um dos maiores desafios urbanísticos do século passado: o que fazer com os carros. Não apenas ele fechou Masdar totalmente para veículos de motor a combustão, como enterrou seus substitutos -a rede de carros elétricos- embaixo da cidade. Os carros tradicionais são detidos nos perímetros.

Mas muita gente se pergunta, apesar do brilhantismo técnico e da sensibilidade às normas locais, como Masdar pode atingir a riqueza e a textura de uma cidade real. Com o tempo, um sistema de trem leve a ligará a Abu Dhabi, e a vida nas ruas sem dúvida ficará mais animada quando a população crescer para os projetados 90 mil. Foster disse que a cidade foi pensada para abrigar um corte transversal da sociedade, de estudantes a trabalhadores em serviços. "Não se trata de exclusão social", acrescentou.

Mas Masdar parece a realização dessa ideia. Desde a morte da noção de que um planejamento consciente poderia melhorar o destino da humanidade, em algum momento na década de 1970, tanto os megarricos quanto as classes médias instruídas cada vez mais encontraram alívio isolando-se em uma variedade de miniutopias.

Isto envolveu não apenas a proliferação de comunidades suburbanas fechadas por muros, mas também a transformação dos centros urbanos de lugares como Paris e Nova York em playgrounds para os turistas e os ricos. Masdar é o apogeu dessa tendência: uma sociedade autossuficiente, sobre um pedestal e fora do alcance da maioria dos cidadãos do mundo.

Fonte: Nicolai Ouroussoff, New York Times / Folha de S.Paulo - Outubro 2010

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/newyorktimes/ny0410201001.htm

Vídeo:
http://www.ecobuilding.com.br/video/127/